ICSI

Ainda existe infertilidade masculina?

A dificuldade para conseguir uma gravidez afeta 15% dos casais, sendo grosseiramente metade por fatores femininos e o restante por fatores masculinos. Se a fisiopatologia da infertilidade feminina vem sendo profunda e rapidamente desvendada, a infertilidade masculina continua sendo um segredo. Como se processa a espermatogênese? E a espermiogênese? Onde agem os andrógenos? Estas questões ainda carecem de respostas objetivas e científicas, e isto leva a que não tenhamos tratamentos específicos e bons resultados.

Entretanto, alguns avanços foram obtidos. Se não se conhece em profundidade o que ocorre no interior do trato genital masculino, aprendeu-se precisamente o que ocorre com o espermatozóide na mulher. Sabe-se que, no seu caminho para o encontro com o óvulo, o gameta masculino sofre dois fenômenos: a capacitação, que transforma sua movimentação permitindo a aproximação do óvulo, e a reação acrossômica, que permite a penetração nas camadas do gameta feminino e a fertilização. E melhor, já conseguimos realizar estas reações em laboratório, “beneficiando” o sêmen. Tudo isto foi aprendido para se realizar o “bebê de proveta”, originariamente criado para tratar mulheres que tinham obstruções tubárias inoperáveis.

Assim, rapidamente, as técnicas de reprodução assistida passaram a ser usadas para obter gestações em casais onde o homem tinha algum grau de infertilidade. Dependendo da concentração espermática, os espermatozóides podem ser colocados no útero (inseminação intra-uterina) ou junto dos óvulos (aspirados do ovário) em uma plaqueta no laboratório, em ambiente rico em CO2 e temperatura controlada (fertilização “in vitro”).

Esta era a realidade do início dos anos 90: a inseminação e a fertilização “in vitro” ofereciam uma chance razoável para homens com infertilidade leve ou moderada, definida pelo número de espermatozóides “capacitados” ou “beneficiados” que eles possuíam. Esse número é identificado utilizando técnicas laboratoriais simples que separam os gametas com maior potencial fertilizante. Um homem fértil tem, em média, mais de 10 milhões destes espermatozóides em um ejaculado. Assim, homens que apresentavam mais de 5 a 6 milhões recebiam a indicação de inseminação intra-uterina e os que tinham entre 1,5 milhão e 5 milhões, eram direcionados para fertilização “in vitro”. As chances de obter uma gestação eram e são razoáveis: por volta de 12 a 20% por tentativa, dependendo do local, do autor e da técnica.

Contudo, ainda ficava de lado um grande número de homens que tinham menos espermatozóides e/ou com qualidade baixa (alterações da motilidade ou da morfologia espermática). E começaram as tentativas de facilitar a penetração do óvulo pelo espermatozóide, até que, inadvertidamente, em 1991, na Universidade Livre de Bruxelas, no serviço do prof. Andre Van Startenghem, um espermatozóide foi injetado no citoplasma do óvulo, ocorreu a fertilização, a clivagem embrionária, o embrião foi transferido para o útero da mãe e ocorreu o nascimento do primeiro bebê produzido pelo que se convencionou chamar “intracitoplasmatic sperm injection – ICSI”.

Hoje, em nosso país, mais de vinte centros realizam esta técnica, conseguindo obter uma criança a partir de um único espermatozóide (que pode ser imóvel, de morfologia alterada). Pode-se retirar espermatozóides do epidídimo, do testículo e o resultado continua a ser bom. Já se fala na utilização de células espermáticas imaturas (embora nestes casos o resultado ainda seja ruim).

Acabou-se a infertilidade masculina! Raríssimos homens deixarão de ser pais! Entretanto, toda estória tem duas versões e dois pontos de vista. A ICSI surgiu sem nenhuma experiência em animais, surgiu diretamente em humanos e para humanos. Por outro lado, rompemos definitivamente a barreira da seleção natural. Quem escolhe o espermatozóide a ser injetado é o técnico, baseado em critérios subjetivos (“mais móvel”, “mais bonito”, etc.).

Não é possível, ainda, utilizar alguma técnica laboratorial para saber qual é o gameta bom, sem danificá-lo, impossibilitando sua utilização. Sabemos que cerca de 25% dos homens com oligospermia grave ou azoospermia (os que têm indicação precisa para ICSI) apresentam alterações cromossômicas ou micro-deleções do cromossomo Y. Por sua própria infertilidade, estas alterações eram limitadas. Agora não, podemos usar espermatozóides de indivíduos com Síndrome de Klinefelter, de homens com agenesia de deferente (portadores do gene da fibrose cística), com translocações equilibradas e obter crianças com doenças semelhantes ou mais graves que as dos pais. Isto precisa ser discutido com o casal e estes homens devem ser submetidos a um exame e a aconselhamento genético.

No New York Hospital da Cornell University de Nova York (EUA), 26% dos casais desistiram de fazer ICSI, quando descobriram que o homem era portador de algumas destas anormalidades genéticas. Por outro lado, a ansiedade gerada pela infertilidade, a aparente simplicidade dos métodos e o forte apelo econômico que as técnicas de reprodução assistida apresentam, fazem com que casais e médicos passem a ver a ICSI como a panacéia de todos os males. Para que operar a varicocele? Por que reverter a vasectomia?

Entretanto, aqui também temos outros aspectos. Os grandes levantamentos estatísticos (American Society of Reproductive Medicine, FIV-Nat da Europa e o Registro Latinoamericano), e não dados isolados de serviços específicos, mostram que as taxas de gestação obtidos por ICSI giram ao redor de 20 a 25% e a taxa de bebês que efetivamente nascem e vão para casa é de 14 a 18%. Ou seja, de cada 100 casais, 18 vão conseguir o seu sonho em cada tentativa. Muito longe de ser uma panacéia.

Vamos tomar a reversão da vasectomia. O que vale mais a pena, reverter com micro-cirurgia ou aspirarmos espermatozóides, no epidídimo ou testículo, e fazer ICSI? Sabemos que, à medida que o tempo passa, diminui o potencial de fertilidade do homem vasectomizado. A Cooperativa Americana de Vaso-Vasostomia mostrou que, após 15 anos de vasectomia, a chance de um homem ejacular espermatozóides após a reversão (sucesso técnico) é de 70% e a chance de obter uma gestação é de 30%. Ou seja, esta chance existe!

Ainda há o lado econômico: levantamento feito pelo dr. Peter Schlegel, do já citado New York Hospital, mostrou que o custo de um bebê nascido, após reversão de vasectomia, está na casa dos 25 mil dólares e o custo desta mesma criança, após ICSI, é de 50 mil dólares.

A utilização de ICSI em homens vasectomizados transfere para a mulher a infertilidade do homem, expondo-a a riscos talvez desnecessários. A possibilidade de acontecer uma síndrome de hiper-estimulação ovariana varia de 1,5 a 5% e, em algumas situações, a paciente pode correr risco de vida, necessitando de cuidados intensivos. É claro que não existe uma conduta uniforme. Não se vai propor reversão da vasectomia para um casal onde a mulher esteja próxima aos 40 anos. Aqui, o tempo é fator decisivo e a realização de ICSI vai oferecer melhores possibilidades ao casal.

Seguramente, a ICSI foi o acontecimento mais maravilhoso para nós que tratamos de homens inférteis. Mas esta arma tem que ser usada com parcimônia e sabedoria, e o casal tem que participar das decisões e receber todas as informações. Existem tratamentos menos fantásticos, porém, menos agressivos e que podem ajudar alguns casais. Eles devem deter o poder de escolher o que preferem.

Ter um filho é uma dádiva divina e, para muitos, este fim justifica os meios. Porém, esperamos ansiosamente que o futuro possa trazer outras terapêuticas, também maravilhosas, mas que devolvam ao casal a possibilidade de gerar um filho, em casa, sem auxílios, da forma mais divertida e prazerosa que conhecemos.

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