O Guia do Bebê reproduz abaixo pronunciamento emitido por três grandes entidades médicas sobre recentes mudanças propostas pelo Ministério da Saúde
Para reduzir custos, Ministério da Saúde coloca em risco a vida das gestantes
Mudanças propostas pelo governo não visam a qualidade na assistência às gestantes, pelo contrário; rompimento de útero em mulheres que já passaram por cesáreas é risco grave e pode levar à morte
Não é só com eliminação de pediatras das salas de parto que o Ministério da Saúde pretende economizar, mesmo gerando riscos às gestantes que utilizam o SUS. No mesmo relatório que está em consulta pública até dia 25 de maio, o governo federal propõe adoção de diretriz (orientação de procedimento) que coloca em risco a vida da gestante, sugerindo parto vaginal inclusive para mulheres que já tiverem três partos através de cesárea. Está na contramão do que é feito hoje no mundo inteiro. O risco de rompimento do útero que já passou por cirurgias durante o trabalho de parto é gravíssimo, principalmente nas condições atuais dos hospitais públicos brasileiros.
O sucesso do nascimento não depende somente da escolha da via de parto. Inclui cuidados, medidas e atitudes de todos os envolvidos no sentido de buscar o melhor resultado, que é o bem-estar da mãe e do bebê. A via de parto interfere nisso, podendo ajudar ou alterar esse resultado. A melhor forma de parto para cada gestante será definida conforme o caso específico. São múltiplos aspectos e o que pode ser bom para uma mulher, pode não ser para outra. Impor uma opção, seja vaginal (“normal”), seja cesárea, não é sensato e pode causar danos à saúde de mães e filhos. Do ponto de vista técnico-médico, a decisão é extremamente circunstancial, pois depende muito da situação no momento do parto. Querer previamente determinar como será feito, com foco evidentemente financeiro, não traz benefícios e coloca gestantes em risco, como o rompimento do útero.
O número de cesáreas no Brasil é elevado comparativamente a outros países e a solução para isso não deve deixar de considerar todos os aspectos envolvidos na decisão pela via de parto e as mulheres devem ser informadas adequadamente dos prós e contras que existem tanto para a via vaginal (“normal”) quanto aquele que é feito por uma cesárea. Precisa ser uma decisão única e exclusivamente das gestantes a maneira como podem ter seus filhos, evidentemente que orientada por médicos, que tecnicamente vão indicar o melhor procedimento, de acordo com o quadro de saúde da mãe.
Cesárea é Ato Médico, inserido em contexto de inúmeras possibilidades clínicas, técnicas e individuais. Para permitir aplicação prática adequada, devemos considerar inúmeras situações isoladas ou em conjunto, sem ferir direitos de gestantes e bebês.
A normativa que vem do Ministério sobre cesárea, na forma de uma Diretriz, destaca que a avaliação desse assunto “deve se apoiar em evidências científicas”. Supõe-se que na ausência dessas evidências, conclusões não podem ser tomadas, a não ser que isso reflita opiniões pessoais de quem elabora o documento. As evidências devem ter boa qualidade. Há propostas no documento que podem expor gestantes e seus bebês a riscos desnecessários e estão apoiadas em evidências questionáveis do ponto de vista científico. Os responsáveis pela elaboração do documento e autoridades do Ministério da Saúde devem ter clareza de que as medidas propostas causarão danos às mulheres e aos bebês, caso algumas orientações técnicas sejam mantidas.
Cesáreas no Mundo
Afirmar que a taxa de cesariana “ideal” é 15%, pois seria preconizada pela OMS não se apoia em evidências científicas sólidas. Não se pode falar em taxa “recomendável” de cesárea, pois esta depende de inúmeros fatores, não só médicos, mas que incluem direitos de pacientes, aspectos culturais, oferta de recursos de saúde, igualdade de acesso, estrutura de serviços etc. Essa suposta taxa “ideal” é superada na ampla maioria dos países mais desenvolvidos, ou seja, a maioria dos países com níveis sócio-culturais e econômicos mais elevados que o Brasil têm taxas de cesariana acima de 15% (Gráfico):
Ministério trabalha com dois números “ideais”
Taxas de cesárea têm aumentado em quase todos os países do mundo. O documento do Ministério da Saúde aponta para taxa ideal de 29% no Brasil – ou seja – o mesmo documento aponta dois valores diferentes como “ideais”, sendo um o dobro do outro!
Bode Expiatório
Outra questão importante é querer culpar a cesariana como causador único ou mais importante de problemas para mãe e criança, em comparação com o parto chamado de “natural” ou normal. Quando uma mulher tenta parto vaginal, podem ocorrer problemas e cesárea de urgência ou emergência pode ser necessária. Esse tipo de cesárea, quando o parto vaginal não dá certo, é que traz mais complicações. Nesse caso, essas complicações devem ser atribuídas à tentativa de parto normal, não à cesariana que é feita sem o trabalho de parto.
A AMB (Associação Médica Brasileira), a FEBRASGO (Federação das Associações Brasileiras de Ginecologia e Obstetrícia) e a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) não concordam que a cesariana seja responsável pela estagnação da queda da mortalidade materna no Brasil. É preciso levar em conta as principais causas de mortes maternas no país, que decorrem de problemas como pressão alta, hemorragias pós-parto (normal ou cesárea), infecções e outras causas como problemas cardíacos. A via de parto não é a principal causa. Os principais problemas são bem mais complexos e envolvem falta de medidas preventivas, planejamento familiar ineficaz, ausência de acompanhamento médico pré-natal, falta de recursos para atendimento, poucos serviços de referência para encaminhamento de gestações de maior risco e falta de estrutura hospitalar acessível a quem precisa. Sabemos que cesáreas envolvem vários riscos, mas esses podem ser minimizados, mas não abolidos, com recursos técnicos e estruturais para atendimento.
Parto normal também envolve riscos, que também podem ser minimizados, mas que continuarão existindo e isso não pode deixar de ser informado para as gestantes e suas famílias. É necessário abordar questões como problemas de oxigenação dos bebês, riscos de aspiração de líquido amniótico, infecções transmitidas pelo canal vaginal, necessidade de uso de fórceps para retirar o bebê em alguns casos, traumatismos de genitais e da musculatura da pelve da mulher, traumatismos do recém-nascido, para exemplificar algumas situações que podem ocorrer nos partos chamados de “normais”.
Para que gestantes e suas famílias possam decidir o melhor para elas é preciso que a informação seja transmitida corretamente. Não se pode passar informações que sejam apenas a favor do parto normal e contra a cesárea, ou o oposto.
Outros aspectos específicos no documento, referentes a situações particulares da gravidez e parto, que merecem atenção
Apresentação pélvica: há orientação no documento no sentido de realizar um procedimento chamado “versão externa” para bebês que estão “sentados” dentro do útero. Esse procedimento envolve riscos para mãe e bebê. O documento não destaca esses riscos, nem informa se a paciente será avisada deles, ou se deverá dar seu consentimento ou não para sua realização. Evidências recentes não mostram benefícios com a realização deste procedimento. Não leva também em conta a necessidade de ultrassonografia para orientá-lo e não informa quem fará a versão e como essas pessoas serão treinadas para isso. Não informa se esse procedimento será em ambiente hospitalar ou não – se não for e ocorrer algum problema, pode ocorrer prejuízo para mãe e/ou criança.
Gestação múltipla: o parto de gêmeos é de risco. Pode dar certo, mas pode ter muitos problemas graves. Não se pode afirmar que o parto pode ser tentado sempre por via vaginal, pois depende de condições como a posição do primeiro feto e o peso dos bebês. Também depende de recursos como possibilidade de anestesia no parto se houver necessidade de fazer manobras para tirar o segundo feto e é necessária equipe treinada para realizar essas manobras, que são difíceis e podem trazer danos para o bebê. As gestantes precisam ser bem esclarecidas de tudo isso, para poderem decidir o que acham melhor.
Nascimentos de prematuros e fetos pequenos: o documento é genérico ao citar que a via de parto não influencia nos resultados para o recém-nascido, mas não leva em conta problemas que podem ocorrer durante o trabalho de parto nesses casos e o uso indispensável de equipamentos para vigilância do bem-estar do feto, enquanto o procedimento está ocorrendo, bem como a necessidade de nascimento em hospital ou maternidade com UTI neonatal, para os quais o acesso não é garantido em todo o país.
Peso fetal e decisão da via de parto: o documento não informa se há peso estimado do feto que possa contraindicar o parto vaginal. Crianças que nascem com pesos superiores a 4kg são de maior risco para uma série de problemas, incluindo cesárea de urgência, parto muito demorado, riscos para o envio de oxigênio para o bebê e risco da criança ficar presa na bacia da mãe e não conseguir ser retirada quando os ombros são muito largos. Tudo isso aumenta o risco no parto vaginal, podendo até levar à morte da criança no parto, embora o documento não aborde essas questões, limitando-se a criticar a avaliação de peso que é realizada pelo ultrassom, que pode ser imprecisa, mas é a única que temos. Também não aborda a questão da gestante ser informada desses riscos e se ela poderá decidir por optar pelo parto vaginal ou pela cesárea.
Herpes simples: afirmações sobre segurança do parto vaginal em situações de infecção aguda genital recorrente por herpes são controversas. Isso não poderia expor os filhos dessas mulheres a contraírem essa infecção ao nascer?
Cesariana prévia: nos casos em que gestante já teve cesárea anteriormente e está grávida de novo, a proposta do documento é que só seja repetida a cesárea se ela já teve três cesáreas prévias. Isto não é praticado de rotina no Brasil, nem na maioria dos países do mundo, e poderá expor a maior risco de rotura uterina durante o trabalho de parto. Parece recomendação muito perigosa e temerária, pois mesmo após uma cesárea já existe o risco de rotura uterina numa próxima gestação se a mulher entrar em trabalho de parto. Apesar do risco ser pequeno, ele existe e o resultado pode ser catastrófico. O documento aparentemente tem até erro numa afirmação ao apontar que cesariana NÃO é recomendada em mulheres com três ou mais cesáreas.
Técnica: apesar de ser uma Diretriz Técnica de cesárea, como pretende o documento, quase nada aborda a técnica desse procedimento cirúrgico, sendo esta uma das coisas mais importantes a serem tratadas num documento deste tipo.
Cuidados com o recém-nascido: o documento não recomenda a presença de pediatra em sala durante a cesariana. Será que as gestantes serão consultadas se concordam ou não com isso? Consideramos indispensável a presença de pediatra em sala, para prestar a melhor assistência ao bebê, evitando piora do seu quadro de saúde, em situações em que ele nasça com dificuldade para respirar ou com outro problema que aconteça no parto. Muitos desses problemas não podem ser previstos anteriormente, assim parto que parece de baixo risco no início, pode se transformar em parto de alto risco em algum momento.
Por fim, consideramos positivo e necessário discutir questões relacionadas à assistência ao parto no país. Entretanto, não podemos ignorar muitas das conquistas em saúde materna e perinatal que tivemos e temos nos dias de hoje. Podemos e devemos melhorar a assistência ao parto no Brasil, mas precisamos avaliar todos os aspectos envolvidos nessa questão e entender que tendo as pacientes direito de decidir o que é melhor para elas e seus filhos, devem ser esclarecidas de forma correta, não tendenciosa, reconhecendo o que existe de informação científica na atualidade, seus limites, sem distorções e de forma ampla.
Ressaltar problemas com um procedimento como cesárea, sem colocar seus aspectos benéficos e o risco de não fazê-la em muitas situações, não colabora com o rigor científico da informação e pode influenciar de forma intencional a decisão que as gestantes irão tomar, podendo aumentar riscos a que elas e seus filhos serão expostos. O documento sobre Diretriz de Cesárea, apresentado da forma como está, precisa de reformulações em grande parte de seu conteúdo, para permitir garantias efetivas para a saúde materna e perinatal.
Demonizar práticas médicas consagradas, sem evidências científicas, com foco ideológico ou puramente financeiro é um caminho equivocado para melhorar a saúde do Brasil. AMB, FEBRASGO e SBP são totalmente contra a forma e o conteúdo desta diretriz e lutarão de todas as maneiras possíveis para garantir o direito a partos seguros para mães e seus bebês.
Acesse o pronunciamento original em:
http://amb.org.br/noticias/para-reduzir-custos-ministerio-da-saude-coloca-em-risco-a-vida-das-gestantes/