Preconceito não impede maternidade de mulheres lésbicas

Mães lésbicas sofrem com preconceito da família e da sociedade e falta de apoio legal

A maternidade é um direito de todas as mulheres e o sonho de algumas. Contudo, quando se trata de mulheres lésbicas que buscam a gravidez – por meio de doadores de sêmen, sejam eles conhecidos ou desconhecidos – o preconceito fica evidenciado. Uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP entrevistou 12 mães ou futuras mães lésbicas e constatou casos de preconceito por parte de alguns profissionais da saúde quando buscavam o serviço de reprodução assistida. “Houve um relato de um médico que se recusou a fazer o serviço por questões religiosas. E também uma das mulheres, cuja parceira queria engravidar, foi chamada de ‘gala-rala’ por um médico”, conta a pesquisadora formada em enfermagem Maria Eduarda Cavadinha Correa. “‘Gala-rala’ é uma expressão utilizada no nordeste brasileiro que se refere pejorativamente a um homem infértil.”

Maria Eduarda é autora do estudo de doutorado Duas mães? Mulheres lésbicas e maternidade, apresentado na FSP em abril. Ela conta que, das 12 entrevistadas, 11 disseram ter desejado em algum momento da vida ser mãe. “Quando elas se assumiam como homossexuais, algumas disseram ter refletido sobre a possibilidade de ser ou não mãe, se elas ainda teriam esse direito”, conta a pesquisadora. “Mas isso não as fez desistir desse sonho.”

O preconceito, muitas vezes, vinha também da relação das mulheres com a família. Maria Eduarda explica que havia três níveis de aceitação familiar à homossexualidade: aquelas que aceitavam bem, as que aceitavam razoavelmente e também as famílias que não aceitavam. “A reação de alguns familiares ao verem as mulheres grávidas era dizer ‘que bom que você se curou’. A homossexualidade seria uma doença e a gravidez, a cura. Isso porque existe aquela imagem da mãe como uma personificação da pureza.”

Métodos

Os métodos conceptivos buscados foram variados. As mulheres preferiam ir a alguma clínica para fazer reprodução assistida — que engloba inseminação artificial, fertilização in vitro e a injeção intracitoplasmática do espermatozóide — onde poderiam escolher um doador de esperma anônimo, para que a experiência de criar uma família fosse exclusivamente do casal, e que tivesse algumas características físicas desejadas pelas futuras mães. “Em um dos casais, por exemplo, a mãe que não engravidaria tinha descendência japonesa. Por isso, elas escolheram um doador que fosse descendente de japoneses, para que a criança parecesse fisicamente com as duas mães. Isso ajuda a criar a identidade do núcleo familiar e facilita também na aceitação da criança pelos familiares das mulheres”, afirma Maria Eduarda.

Além da reprodução assistida, outros possíveis métodos a serem utilizados são a inseminação caseira ou a relação heterossexual ocasional para fins reprodutivos. Na inseminação caseira, a mulher usa a tabelinha para controlar seu período fértil, compra o equipamento necessário e precisa contar com a doação de esperma, geralmente de alguém de confiança, para fazer aplicação.

Todos esses métodos, porém, são caros e exigem uma boa condição financeira de quem deseja utilizá-los. Cada tentativa de inseminação artificial pode custar até R$ 25 mil. Por isso, quem não tem muito dinheiro precisa usar outros métodos.

Entre as participantes do estudo, uma teve uma trajetória diferente das outras. “Todas as outras vinham de classe média, tinham desejado ser mães em algum momento da vida. Mas uma delas nunca tinha desejado ser mãe e tinha uma condição social inferior”, conta. Solteira, ela resolveu ter um filho pois havia sido diagnosticada com câncer de útero. “Ela teria que retirar o útero. Então, até um pouco por pressão da família e da equipe médica, resolveu engravidar”. Como não possuía condições de pagar uma clínica, ela pediu a ajuda de um amigo, também homossexual, que aceitou ter relações sexuais para que ela engravidasse. “Ela contou que foi horrível. Depois de três tentativas já não aguentava mais e pensou desistir, mas na terceira vez ela engravidou.”

ROPA

Outro aspecto considerado positivo pelas mulheres era a técnica de Recepção dos Óvulos da Parceira (ROPA), que permite a participação das duas mães na geração da criança. Uma cede o óvulo e a outra tem a gestação. Na época das entrevistas, realizadas entre 2009 e 2011, um casal estava tentando engravidar com a ROPA, mas não obteve sucesso, e outra mulher já tinha uma criança nascida com a utilização da técnica. “Todas viam a ROPA como uma ótima possibilidade de as duas parceiras participarem da gravidez”, afirma Maria Eduarda. De acordo com a legislação brasileira, mãe é aquela que gerou e pariu o filho. Com a ROPA, porém, a maternidade genética é da mãe que cedeu o óvulo e a maternidade biológica é da mãe que gestou e pariu a criança. A técnica acaba sendo, também, uma forma de auxílio em questões jurídicas de reconhecimento de maternidade.

Mesmo assim, a ROPA não é garantia de que a dupla maternidade seja reconhecida. Uma das mulheres que participou do estudo estava, à época das entrevistas, passando por um processo de separação. Como a parceira foi quem gestou a criança, ela foi proibida de visitar a filha.

A dificuldade encontrada pelas lésbicas para exercer o direito à maternidade se deve, em grande parte, à falta de uma legislação reguladora para o caso. “Cada juiz, clínica ou cartório acaba agindo da forma que decidir. As clínicas podem, por exemplo, não aceitar realizar o processo de reprodução, fazendo com que as lésbicas precisem procurar o serviço como solteiras. Os cartórios podem também não aceitar que a criança tenha o sobrenome das duas mães”, conta Maria Eduarda. Segundo ela, entre as entrevistadas, todas as mulheres que tentaram conseguiram “empurrar” o sobrenome das duas mães no nome da criança. “Apesar de muitas terem êxito em colocar os dois sobrenomes, é bom salientar que isso não implica em ganhos de direitos”, completa.

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